quinta-feira, 17 de maio de 2012

Verdade, Sinceridade e Veracidade X Mentira e Ilusão


Thomas Merton

Verdade objetiva é uma realidade que se encontra tanto dentro como fora de nós, à qual pode a nossa inteligência conformar-se. Devemos conhecer essa verdade, e manifestá-la por palavras e ações.

Não se exige que se mostre tudo que sabemos, porque há coisas que nos cumpre guardar ocultas dos homens. Mas, há outras que devemos tornar conhecidas, ainda que outros já as conheçam.

Devemos à realidade que nos cerca uma homenagem definida, e somos obrigados, em certas ocasiões, a dizer o que são as coisas, dar-lhes o seu nome verdadeiro e expor aos homens com que vivemos o nosso pensamento sobre elas.

O fato de viverem os homens constantemente a falar mostra a sua carência de verdade, e a dependência em que se acham do testemunho recíproco, para que se forme e confirme em sua mente a verdade.

Mas o fato de desperdiçar-se tanto tempo em falarem de nada, ou em trocarem entre si as mentiras ouvidas, ou de perderem tempo em escândalos, maledicências, calúnia, brincadeiras pesadas e em zombarias, mostra que o nosso espírito é deformado por uma sorte de desprezo da realidade. Em vez de conformar-nos ao que é, torcemos nossas palavras e pensamentos, para adaptá-los à nossa própria deformação.

O lugar em que se instala essa deformação é a vontade. A despeito de ainda falar a verdade, vamos perdendo cada vez mais o desejo de viver de acordo com ela. Nossos desejos não são verdadeiros, porque se recusam a aceitar as leis do nosso ser: deixam de funcionar segundo as linhas da nossa realidade. Mergulhados em falsos valores, arrastam consigo a nossa mente, enquanto as nossas línguas, incansáveis, testemunham, sem cessar, a desordem que nos vai alma adentro. (...)

Veracidade, sinceridade e fidelidade têm estreito parentesco. Sinceridade é ser fiel à verdade. Fidelidade é ser veraz nas promessas e resoluções. Uma inviolável veracidade nos torna fiéis a nós mesmos, a Deus, e à realidade ambiente. E, por isso mesmo faz-nos perfeitamente sinceros.

A sinceridade, no seu mais profundo sentido, deve ser mais do que uma disposição temperamental à franqueza. É uma simplicidade de espírito, preservada pela intenção de ser verdadeiro. Ela implica o dever de manifestar a verdade, e defendê-la. O que por sua vez, reconhece que somos livres de respeitá-la, ou não, e que ela, até certo ponto, fica à nossa mercê. Mas, isto, é uma terrível responsabilidade, pois, profanando a verdade, profanamos nossas almas.

A verdade é a vida da inteligência. O espírito não vive plenamente, senão pensando direito. E se ele não vê o que faz, como pode a vontade fazer bom uso da liberdade? Mas, uma vez que a nossa liberdade é, de fato, imersa numa ordem sobrenatural, e tende a um fim sobrenatural que ela não pode sequer conhecer por meios naturais, a vida plena da alma deve ser luz e vigor, que Deus lhe infunde sobrenaturalmente. Esta é a vida da graça santificante, com as virtudes infusadas de fé, esperança e caridade, e todas as outras.

A sinceridade, no sentido mais pleno, é um dom divino, uma clareza de espírito que só pode vir com a graça. Enquanto não formos "homens novos", criados segundo Deus "em justiça e na santidade da verdade", impossível nos é evitar um pouco da mentira e da fraude que se tornaram instintivas na nossa natureza, corrompida, como diz S. Paulo, "segundo os desejos do erro" (Ef 4,22).

Um dos efeitos do pecado original é esse instintivo preconceito em favor dos nossos desejos egoísticos. Não vemos as coisas como são, porque tudo vemos centralizado em nós. Medo, ansiedade, gula, ambição e essa desesperada fome de prazer, tudo deforma a imagem da realidade que se reflete em nossa mente. A graça não corrige, de repente, essa distorção: mas dá-nos os meios de reconhecê-la e de dar-lhe o devido desconto. E nos ensina o que temos de fazer para a corrigir. A sinceridade paga-se a este preço: humildade em reconhecer os nossos inúmeros erros, e fidelidade em retificá-los incansavelmente.

O homem sincero, portanto, é o que tem a graça de saber que pode ser instintivamente insincero e que até a sua sinceridade natural pode converter-se em disfarce da irresponsabilidade e da covardia moral; como se fosse bastante reconhecer a verdade, e ficar de braços cruzados!

Como é que a nossa confortável sociedade perdeu o senso de um valor como a veracidade? A vida tornou-se tão fácil que pensamos poder passá-la, sem falar a verdade. Um mentiroso não mais tem necessidade de sentir que a sua mentira é capaz de levá-lo à inanição. Se viver fosse uma coisa mais precária, e os hipócritas tivessem dificuldade em ser aceitos pelos outros homens, não nos enganaríamos a esse ponto, seja a nós mesmos, seja uns aos outros, com tanta negligência.

Mas o mundo inteiro aprendeu a escarnecer da veracidade, ou a ignorá-la. Metade do mundo civilizado ganha a vida pregando mentiras. A propaganda, os anúncios, e todas as formas de publicidade que tomaram o lugar da verdade, ensinaram os homens a supor que podem dizer a outros o que quiserem, contanto que soe bem e provoque neles uma resposta emocional profunda. (...)

A sinceridade torna-se impossível num mundo governado por uma falsidade que ele se crê bastante arguto para descobrir. Apesar de menoscabar a propaganda, continuamos a amá-la. (...)

Essa duplicidade é um dos sinais mais certos dum estado de pecado, em que a pessoa é cativa dum amor que ela sabe que deve odiar.

Thomas Merton, Homem Algum é Uma Ilha.

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