terça-feira, 3 de abril de 2012

Dificuldades da vida cristã - O que fazer diante dos ataques dos outros e diante da constatação da nossa própria fraqueza?


Escrevo este texto em resposta à pergunta que uma cara amiga me fez recentemente e que basicamente se resumia a duas partes: 1- por que, se nos decidimos por Cristo de fato, tantas são as pessoas que ficam contra nós, nos fazendo contínua oposição, e somos expostos à perda de "tudo"? 2- Isto significa que, para ser um bom cristão, é preciso ser masoquista, ser de ferro ou ser divino?

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Seduziste-me, Senhor, e eu me deixei seduzir.
Por tua causa e por teu nome estão todos contra mim (Jer 20,7)

Para que vivemos? Vivemos para nos santificarmos, dirá Sto Afonso. Este é o grande motivo pelo qual Deus nos mantém nesta vida, o que significa que tudo o mais, comparado a isto, é bastante secundário.

A santidade acontece quando há união de vontades, isto é, quando a vontade de Deus se torna a minha, de modo que eu queira o que Deus quer e deteste o que Deus detesta. No entanto, é preciso entender que há uma desordem em nós, fruto do pecado. Este é um fator importantíssimo para entendermos as dificuldades práticas que enfrentamos no decorrer da vida e na luta por sermos pessoas boas.

Esta desordem na alma nos inclina sempre ao egoísmo, explícito ou disfarçado. Isto se torna como que uma tendência natural nossa. Acontece que o egoísmo é o que há de mais oposto à santidade. Logo, se somos egoístas, estamos frustrando a única razão pela qual vivemos. E, no entanto, é um fato que somos fortemente inclinados ao egoísmo. Como resolver este problema?

Negando-nos a nós mesmos. "Quem quiser me seguir - se quiser - negue-se a si mesmo"; "Quem não faz pouco caso da própria vida, não é digno de mim". São expressões e mandamentos difíceis, mas profundamente curativos e necessários a uma alma que pretenda adquirir saúde. A "vida em plenitude" que Jesus promete não se alcança de qualquer modo. O nosso egoísmo sufoca a nossa alma e não lhe permite fruir da autêntica alegria. Portanto, é preciso dilatá-la - à alma -, arrancando as raízes do egoísmo nela. De início, isto não é confortável; é dolorido, é enfadonho e cansativo, do mesmo modo que é dolorido, enfadonho e cansativo que um doente tenha de fazer exercícios físicos. E, no entanto, é necessário. Submeter-se a esta violência contra si mesmo é o caminho do despertar. "O reino dos céus pertence aos violentos". 

Há que se ter, portanto, um desprendimento de si mesmo, e entender bem todo este contexto: o centro de tudo deve ser Deus, e todo o resto - as amizades, os compromissos, as brincadeiras, os lazeres - deve estar em harmonia com Deus. A aquisição, porém, de uma vontade aguerrida, de um olhar claro sobre o que se deva fazer e de uma compreensão profunda da própria alma, é algo um tanto difícil - na verdade impossível - de se alcançar sozinho. É por isso que precisamos de auxílio. Deus muitas vezes nos ajuda, seja incidindo diretamente sobre nós os seus dons, seja nos tocando indiretamente, através de outras pessoas. Neste último caso, haverá quem nos console e dê forças; mas haverá, também, quem nos importune e incomode, ajudando-nos, dependendo do modo como lidamos com isto, a acelerar o processo de extirpação do nosso egoísmo.

Já dizia um santo: "existimos para amar e tudo quanto existe, existe para tornar o amor possível". S. João da Cruz diz a mesma coisa: "estás aqui para te santificares. Considera que todos estes que te importunam são ajudadores que Deus enviou para que te libertes de ti mesmo".

Além disto, há os que efetivamente nos querem derrubar e estranham quando o nosso discurso alcança o grau de uma firmeza irredutível; sentem-se sutilmente atacados, denunciados na sua tibieza e isto às vezes se transveste, neles, de sobriedade, de realismo e tolerância. Chamam-nos logo de arrogantes e duvidam das nossas intenções. Muitas vezes são sujeitos pretensiosos, afetados de falsa humildade, que entendem ser a virtude um certo tipo de moleza e bom mocismo - uma coisa cosmética que a ninguém deve incomodar - e que fazem as vezes do próprio demônio. Mas, ainda que nos queiram e possam, objetivamente, prejudicar, se estivermos com as devidas disposições de alma, serão, antes, preciosas ajudas.

S. Francisco de Assis, quando atacado por demônios, gritava-lhes o seguinte: "isso mesmo! Meu maior inimigo sou eu mesmo. Se vocês surram este meu inimigo, só estão me fazendo um grande bem."

S. João da Cruz, por sua vez, após passar extremos sofrimentos, aos quais se referia pelo termo "noite", poetizou:

"Oh noite mais amável que a alvorada; oh noite que juntaste Amado com amada, amada já no Amado transformada".

E aí, eu retomo a pergunta: é preciso, então, ser de ferro, masoquista ou ser divino demais?

É preciso, primeiramente, entender que tudo isso é muito real:
a) o nosso orgulho, que precisa ser extirpado da alma e cuja remoção só se consegue com luta;
b) a necessidade de alcançarmos um conhecimento agudo da nossa própria fraqueza, o que nos motivará a pedir com sinceridade o auxílio divino.

Entender ainda que, se a nossa natureza reclama e o nosso ânimo se abate, talvez isto se deva também por estarmos viciados nalguma suposição equivocada, ou presos por caprichos pessoais. A soberba tenta fazer com que o mundo se adéque aos nossos gostos subjetivos. Se, porém, isto não se dá - e não pode se dar - a alma se abate. Daí o grande e salutar segredo do abandono em Deus; da espiritualidade da Pequena Via; do amor aos desígnios de Cristo, sejam eles quais forem. Este tipo de amor, que se entrega, torna-se amor adorante, oblativo, pois nele há uma atitude de sacrifício, de auto-desapego, e de Fé real na bondade divina.

Deus sabe da nossa dor e está disposto a nos ajudar se a Ele nos achegarmos. Para suprir essa nossa necessidade, fez-Se acessível, seja pelos sacramentos, seja pela oração individual. Mas é preciso entender que o Seu amor por nós não pode privá-Lo de trabalhar em nosso favor e isto, muitas vezes, implicará em espremer a ferida purulenta da alma, ainda que doa, para que dela se desprenda a sujeira que a infecta.

Além de tudo isto, Deus às vezes quer ver a nossa fidelidade. Amá-Lo quando todos nos aplaudem seria fácil. Porém, o verdadeiro amor trará sempre a marca da Cruz, pois é este um sinal muito amado por Jesus e com o qual ele marca tudo quanto seja verdadeiramente Seu. Mas é a Cruz a nossa esperança. É como diz a Igreja: Ave Crux Spes Unica.

E quanto aos que se nos opõem? O que fazer a respeito?

Primeiramente, não deixar de rezar por eles e pedir a Deus a graça de amá-los. Depois, não pensar que amá-los significa dar-lhes crédito ou levá-los a sério; às vezes, o correto será dizer-lhes umas boas verdades, ou ignorá-los ou até dar-lhes uma banana. Frequentemente, esses sujeitos são só pessoas infladas de falsa virtude. Penso que o que se deve fazer é não se incomodar com eles, nem ficar a considerá-los interiormente. Se for possível ajudá-los, ajudemo-los. Se não, recomendemo-los a Deus. Mas, no geral, eles podem contribuir para que nos desapeguemos ainda mais de nós mesmos, e isto é o segredo da liberdade.

Já dizia S. Francisco de Assis que a verdadeira alegria existe quando, ainda que apanhando e recebendo ofensas pessoais, sequer movemos interiormente qualquer pensamento raivoso em relação ao sujeito que nos insultou. Isto, claro, é uma realidade muita alta; mas a verdadeira alegria não é, mesmo, qualquer coisa. Não à toa, Jesus fala que devemos nascer de novo. Isto significa, contudo, que devemos trabalhar para que o que antes nos incomodava - porque feria o nosso egoísmo - chegue, então, a não causar sequer qualquer repercussão interior. É o que os espirituais chamam de "santa indiferença", e os orientais chamavam de "apathia". E essa graça só se consegue com muita disciplina e a ajuda de Deus.

Respondendo, então, diretamente às perguntas:

É preciso ser masoquista? Não. Nem devemos sê-lo.

É preciso ser de ferro? Não; e é preciso saber que não somos. Muitas vezes, Jesus permite que caiamos repetidas vezes para que possamos desenvolver a certeza da nossa própria fraqueza, sem a qual Ele mal encontra espaço para fazer qualquer coisa em nós.

É preciso ser divino? Sim, e este é o ponto! Todo o cristianismo é a imitação de um Deus humanado. Se imitamos a um Deus, precisamos agir de modo divino. Porém, isto não depende somente das nossas forças. É algo que Deus realiza em nós, se nos abandonamos. E para alcançarmos esta realidade, cumpre começarmos e, paulatinamente, irmos destruindo esse falso eu ao qual nos habituamos e nos apegamos, mas que não conhece nada do que seja a vida verdadeira. É preciso que nos submetamos, gradativamente, a uma espécie de morte para que, mais e mais, seja o Cristo a viver em nós. E, contudo, isto é uma aventura saborosa; deliciosa; de uma arrebatadora felicidade.

O cristão deve ter uma visão sobrenatural da vida, do mundo, das amizades, de tudo. Deve ter cuidado para não naturalizar as coisas; essa imanência moderna é a causa de todo mal no mundo e o motivo de haverem tantos "cegos guiando cegos", pois faz parte da cegueira espiritual que o cego não se saiba cego e que reduza toda a realidade ao estreito corredor do seu pequeno mundinho.

O cristão deve ter ainda uma disposição aguerrida, dada à luta, entendendo que o que se está buscando não visa, primeiramente, ao conforto da sensibilidade nem à satisfação dos caprichos do ego. Muito pelo contrário, é deste ego que temos de nos livrar. Devemos compreender que o que estamos a seguir e a defender é algo que ultrapassa infinitamente e abismalmente o pequeno pontinho inútil que são os nossos desejos egoístas. É  só quando entendemos esta verdade - quando a entendemos de verdade - que podemos alcançar a liberdade necessária para abrir mão dos nossos caprichos - bem como dos nossos medos -, e elevar os nossos olhos à imensidão infinita do céu; é a livre, suave e deleitosa contemplação desinteressada da Beleza.

Para chegarmos aí, sofreremos. Teremos a cruz como uma companheira diária. Choraremos, também. Seremos incompreendidos. Amigos queridos e familiares nos acusarão de tudo quanto seja. Mas isso Jesus mesmo já dizia: "Por minha causa, em uma mesma casa ficarão três contra dois e dois contra três". No entanto, é pela nossa fidelidade - conquistada com sangue, suor e lágrimas, mas também uma alegria descomunal que, vez ou outra, Ele nos permite vislumbrar - que podemos ter a legítima esperança de que o amor destilado pelo nosso coração alcance estes mesmos que, hoje, nos lançam pedras.

O que digo, enfim, é: coragem! Se poucos levam a sério o cristianismo, seja destes poucos. Também a Elias, o único que estava cuidadoso das coisas de Deus e que se dizia "devorado de amor pelo Senhor dos Exércitos", tentaram ferir. É assim mesmo. 

Já dizia S. João da Cruz:

"Sofrer pelo Amado é melhor do que fazer milagres"

Já dizia Sta Teresa D'Avila:

"As prisões, as ignomínias e afrontas por meu Cristo e por minha religião, são regalos e mercês para mim... cruz busquemos, cruz desejemos, trabalhos abracemos!"

"Não haja, entre nós, covarde! Aventuremos a vida: Não há quem melhor a guarde que o que a deu por já perdida."

"O amor quando já crescido não pode ocioso ficar, nem o forte sem lutar por amor de seu Querido"

Já dizia Sta Teresinha de Lisieux:

"Morrerei no campo de batalhas, de armas na mão".

Já dizia S. Paulo Apóstolo:

"Deus me livre de gloriar-me em outra coisa a não ser na Cruz de Nosso Senhor"

Força, aí! Embora tudo isso pareça meio pesado, a porta estreita tem a propriedade de nos livrar de todo peso inútil. O que nos cansa não é a doutrina de Nosso Senhor, mas a soberba que trazemos conosco. Se dela nos livrarmos, descansamos e tudo fica fácil. Aquele que se dispõe a viver a autêntica vida cristã, esvaziado de toda inutilidade, haverá de fazer a experiência de como o jugo do Senhor é leve e de como é suave o Seu peso.

Abraço.

Fábio.

Um comentário:

Christian disse...

Obrigado por tudo, querido amigo.

:)

Você traz alegria a minha alma.