quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Eficácia do desprendimento de si demonstrada no tiro com arco - uma experiência do zen


E assim, voltamos a começar desde o princípio, como se todo o aprendizado tivesse sido inútil. Continuava impossível para mim permanecer sem intenção dentro, como se fosse possível escapar de um caminho por demais viciado, até que um dia perguntei ao mestre:

"Como o disparo pode ocorrer, se não for eu que o fizer acontecer?"

"Algo dispara", respondeu-me.

"Já ouvi essa resposta outras vezes. Modifico, pois, a pergunta: como posso esperar pelo disparo, esquecido de mim mesmo, se eu não posso estar presente?

"Algo permanece na tensão máxima".

"E o que é esse algo?"

"Quando o senhor souber a resposta, não precisará mais de mim. E se eu lhe der alguma pista, poupando-o da experiência pessoal, serei o pior dos mestres, merecendo ser dispensado. Por isso, não falemos mais! Pratiquemos!"

Passaram-se muitas semanas sem que eu tivesse avançado um passo, mas isso em nada me afetava. O longo aprendizado tinha me tornado indiferente. Aprender a arte, descobrir o que o mestre quis dizer com o seu algo,  encontrar o acesso ao Zen, tudo isso me pareceu de repente tão longínquo, tão indiferente, que já não me preocupava. Em várias ocasiões, propus-me confessá-lo ao mestre, mas diante dele a coragem desaparecia. Estava convencido de que escutaria outra vez a sua resposta tranqüila: "Não me pergunte, pratique!" Então, deixei de fazer perguntas e por pouco, também de praticar, se o mestre não me tivesse mantido seguro nas suas mãos.

Indiferente, eu deixava os dias passarem, cumprindo da melhor maneira possível minhas obrigações profissionais, já não me afastando a constatação de indiferença que eu tinha diante daquilo a que, durante anos, eu dedicara meus mais persistentes esforços.

Certo dia, depois de um tiro executado por mim, o mestre fez uma profunda reverência e deu a aula por terminada. Diante do meu olhar perplexo, exclamou: "Algo acaba de atirar". E, ao compreender o que ele queria dizer, fui tomado por uma incontida explosão de alegria.

"Minhas palavras", advertiu-me o mestre, "não são de elogio, mas uma simples constatação que não deve alterá-lo. A minha reverência não foi dirigida ao senhor. O mérito desse tiro não lhe pertence, pois o senhor permanecia esquecido de si mesmo e de toda intenção, no estado de tensão máxima: o disparo caiu, tal qual uma fruta madura. Agora, continue praticando, como se nada tivesse acontecido.

Transcorreu muito tempo até que eu conseguisse alguns poucos tiros perfeitos, que o mestre saudava, sem dizer uma única palavra, com profunda reverência. Como era possível que se produzissem sem minha intervenção, por si mesmos? Como era possível que minha mão direita, firmemente fechada, se abrisse sem que eu soubesse e ainda não saiba explicar? A verdade é que era dessa forma que as coisas ocorriam, e isso é o que importa.

Com o passar do tempo, eu mesmo conseguia distinguir os tiros frustrados dos tiros bem-sucedidos. A diferença qualitativa era tão grande que, uma vez sentida, não mais passará despercebida.

Para o observador, o tiro bem-sucedido se dá quando o rebote da mão direita se amortece a tempo, sem sacudir o corpo. Por outro lado, depois dos tiros frustrados, a respiração até então retida sai de maneira explosiva, havendo necessidade de inspirar imediatamente. Ao contrário, quando o tiro é feito com êxito, a respiração, que estava presa, sai com suavidade, voltando-se a inspirar pausadamente. O coração continua a bater num ritmo uniforme e tranqüilo e a concentração, por não ter sido perturbada, permite iniciar de imediato o segundo disparo.

O resultado interior dos tiros executados com perfeição causam a sensação de que o dia acaba de nascer. Depois deles, o arqueiro se sente apto a praticar toda espécie de ação perfeita ou a mergulhar no mais puro ócio. É um estado extraordinariamente delicioso. "Mas", adverte o mestre, "quem o experimenta, melhor fará se ignorá-lo. Somente uma firme serenidade é capaz de fazer com que ele volte sempre."

Eugen Herrigel, A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen

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Ps.: Um bom cristão saberá tirar lições valiosíssimas do relato acima. Um mal cristão se fechará numa tola demonização da experiência referida.

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