quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Ainda as neuroses: a criança mimada interior


Já faz um tempo que iniciei a série sobre as neuroses, mas não cheguei a terminá-la. Vinha seguindo a exposição e a cortei com uma sucessão de textos do mesmo assunto, mas de um autor já consagrado, o Rudolph Allers, desconhecido em geral somente porque se opôs a Freud e terminou por elaborar uma teoria que concorda exatamente com a visão cristã do homem. Se considerarmos que a visão cristã do homem é a visão correta - por mais pretensioso que pareça ser, vamos fazer o quê? É assim, oras - entenderemos como uma Psicologia também correta deva se erigir em total harmonia com os dados da Fé. Tal é, portanto, a teoria do Allers.

Deixa, então, eu voltar à minha baixeza e abordar as coisas que eu vim aprendendo nestes tempos de lutas interiores. Há vezes em que eu desmascaro, mesmo, este jogo neurótico e passo tempo sem ser incomodado. Mas, essas cessações de combate terminam por me deixar, digamos, enferrujado, rs... Porém, o negócio nunca deixa de ser familiar...

Mas, continuemos. Da última vez, eu antecipei que abordaria duas coisas: uma tal de teoria da não vinculação (eu que cunhei o nome, hehe) e mostraria a semelhança entre estas neuroses frescas e aquelas crianças chatas e mimadas.

Como faz tempo que escrevi a última postagem sobre o assunto, relembro que a neurose trabalha sempre com suposições e que elas pretendem, em última instância, nos defender contra possíveis ameaças. Estas suposições, influenciadas pela fuga da dor, geralmente carecem de objetividade e, para lidar com elas, há que se ser cético. Absolutamente cético. Uma das características dessa dinâmica é que, se o sujeito for procurar argumentos que validem a sua acrobática teoria, ele os encontrará. Por isto que o ceticismo aqui deve ser, mesmo, total.

Mas vamos lá. 

Não é difícil entender que o sujeito que age segundo seus caprichos torna-se um imaturo. As razões que pedem nossa ação devem ser mais profundas que as do campo epidérmico da sensação imediata. Um sujeito que seja tão volúvel quanto a superfície das suas disposições imediatas jamais adquirirá constância e sequer poderá ser fiel ao que quer que seja. A fidelidade, onde quer que ela se dê, implica que o indivíduo age segundo critérios mais profundos, a ponto de, mesmo se sua sensibilidade lhe inclinar à traição, ele não cair. Ora, se ele age de um modo constante, não obstante a oscilação das suas sensações, isto significa que o que definiu a sua atitude foi algo mais profundo.

No caso da pessoa imatura, ela tenderá a agir sempre segundo o apelo da situação. Se vê que adquire certo prazer ou fama de um modo, é deste que ela agirá. Se, ao contrário, ela antecipa que poderá se sentir confortável com tal atitude, ela a evitará. Vemos que é, mesmo, algo de sensibilidade. Geralmente, as pessoas sensuais agem bastante por meio deste critério.

Pois bem. As neuroses são o que há de mais infantil. Além de inventar teorias dignas do Mundo de Bob, elas ficam enchendo o saco, querendo satisfação. Porém, esta satisfação não é algo que cause prazer. Em geral, é algo que garanta ao sujeito que, se ele obedece, estará a salvo de algum perigo virtual.

Tomemos o seguinte exemplo: imaginemos um garoto, bem gordo e bochechudo, com olhar altivo. Acontece de esse pivete ser nosso sobrinho. De repente, ocorre-nos a idéia de jerico de levá-lo a um supermercado porque queremos comprar lá não sei o que. Passamos, então, pela prateleira de chocolates. O pivete, triste por não poder comer de imediato até as caixas de papelão, começa o seu ritual de puxar a borda da nossa camisa pedindo o bendito doce. Não importa se não temos dinheiro ou se apenas não queremos satisfazer o chato do nosso sobrinho - Vai que ele explode... -, o menino começa a gritar e a fazer seu show. Esperneia, cai no chão, chora e esbraveja. Tudo isto, naturalmente, chamará a atenção dos demais e nos colocará numa posição desconfortável. Qual é a melhor coisa a se fazer? Compra o chocolate! Se essa é a nossa atitude, agimos como neuróticos! Comprar a bendita caixa apenas amortece o problema por enquanto. Mas, o que fizemos foi tão somente satisfazer os apelos infantis de um chato. Eis a estratégia do neurótico ingênuo. Ele se torna um marionete nas mãos dos seus medinhos.

Para que a comparação fique bem feita, temos de conceber um menino que tenha um apetite sem fim. Ele se contenta enquanto há um chocolate na mão. É quando deixa de fazer barulho. Mas, tão logo o devore, recomeça a sua algazarra. Agora, notemos: quanto mais comprarmos chocolate para o madimbu, quanto mais satisfizermos os seus caprichos, mais estaremos demonstrando que a sua estratégia de causar desconforto funciona. E, por responder no nível de uma criança mimada, estaremos agindo de modo imaturo.

O que deveríamos fazer? Deixar o pivete esbravejar uma vez. Se, depois de bastante tempo, ele visse que nos mantemos irredutíveis, ele, claro, deixaria de chorar. De outra vez, quando passássemos pelo supermercado de novo, ele voltaria a chorar, mas, agora, com uma certa hesitação, pois da última vez o negócio não funcionara. Se, de novo, não cedermos, chegará o momento em que teremos ficado livres do incômodo, até o ponto de podermos acampar defronte às prateleiras de chocolate e sequer ouvirmos um piu. Teremos transformado o gordinho num buda, rsrs...

Entendamos, então, que este gordinho é nossa neurose e que, em várias situações e momentos, quererá nos chamar a atenção, para que façamos algo. O segredo é: não fazer! Perceber que aquilo é tão somente um capricho, ainda que ele nos ameace com coisas mais assustadoras do que uma vergonha num mercado. Estas coisas ameaçadoras que, no momento, podem nos aparentar tão reais, perderão seu disfarce se agirmos do modo como aqui é dito. E mais! Toda neurose tem um colorido muito característico. Aprenderemos, deste modo, a reconhecê-las todas.

Porém, uma coisa a se considerar, e que vim perceber de modo mais claro ao ler o Allers, é que a mera resignação diante do desconforto pode consistir numa atitude semelhante à da soberba que, como vimos, é a própria raiz da neurose. De fato, fazer-se de fortão ou de inatingível pode reforçar a soberba. O que aqui proponho não é isto! É tão somente reconhecer que aquilo não é verdade e, daí, não corresponder ao apelo infantil. Note que há uma diferença essencial! A verdade é íntima da humildade e, portanto, é inimiga da soberba. Agir de acordo com a realidade das coisas é ser humilde.

Se, porém, fizéssemos o contrário e satisfizéssemos o gordinho toda vez, chegaria o dia em que, por simplesmente avistar ao longe o supermercado, ele já iniciaria a sua brincadeira sem graça. Notem, por exemplo, como há pessoas que evitam usar certas palavras, ou fazer certas associações, e coisas semelhantes. Isto parece cair quase no campo da superstição.

O que se requer, então, é que o sujeito não se precipite em obedecer os caprichos desta sua criança interior. Quando eu estudava Psicologia, cheguei a aprender uma teoria lacaniana que, a meu ver, era muitíssimo interessante: tratava-se da transferência imaginária e da transferência simbólica. Como na época certas coisas me eram ainda bem obscuras, não sei se a idéia que apreendi era a correta, mas o que eu entendi foi fundamental.

A transferência imaginária consiste em obedecer o gordinho. Pelo fato de berrar, ele naturalmente nos coloca numa posição: a de incomodado que comprará o chocolate. A tendência primeira nossa será a de assumir justamente esta posição. Esse mecanismo pode ser usado, inclusive, como meio de manipulação. Muitos de nós apenas costumamos reagir, ao invés de agir autonomamente. Se alguém nos grita, nós assumimos a posição que nos foi suposta, e agimos a partir dela, geralmente esbravejando de volta ou nos encolhendo em nosso canto. 

Outra coisa é a transferência simbólica. Nesta, o sujeito não obedece a suposição do outro, mas justamente a nega, ignorando-a. É como se, diante do drama do outro, este sujeito não lhe dá a mínima. Isto termina por fazer que o drama perca razão de ser. Se, ao contrário, ele agisse de acordo, isto terminaria por reforçar o drama. Agora, notemos como é ridículo o indivíduo que, surpreendido por uma criança que o xinga,  responde à mesma altura! É a mesma coisa. Convirá, ao contrário, que sua atitude não seja condicionada pelas más maneiras do pivete.

Aplicando isto às nossas neuroses, se as obedecemos, estamos no campo da transferência imaginária, e terminamos por reforçá-las. Se, ao contrário, aprendemos a ser indiferentes, elas incomodarão por um tempo ainda - a inércia de que falei num post anterior - e, por fim, perderão razão de ser. No entanto, penso que a maior dificuldade do neurótico é mesmo, pelo menos a princípio, duvidar de si. Depois de um tempo, isto tende a ficar mais natural e a pessoa adquire um trato maior com a coisa. Mas só se deixar de agir como marionete.

Haveria tanto o que dizer aqui, mas nos contentemos, por ora, com essa visão geral.

No próximo, sim, falarei da outra teoria lá.

Pax.

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