quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O Sair de si mesmo e alguns paralelos da Escritura


Sigamos com a nossa exposição sobre o modo de lidar com as neuroses.

Compreendamos, primeiramente, que o desejo e o medo têm uma íntima relação, sendo este último basicamente um desejo de que algo não aconteça. Quando, por exemplo, nós temos medo de ir para o inferno - e realmente devemos temer isso -, o que na verdade estamos fazendo é desejando não ir ao inferno. Pois bem. 

O desejo é basicamente uma tensão da alma em direção a algo. Logo, o medo seria uma tensão da alma em direção oposta a algo. Se assim é, uma pessoa que se põe a desejar inúmeras coisas, como a temê-las também, viverá com a alma tensa. A tranquilidade, então, se faria quando tanto os desejos quanto os medos cessassem. Esta tranquilidade é fundamental para que o sujeito possa ter uma visão clara e objetiva das coisas. Diz Deus por meio de um salmista: "Cessai, e vede que eu sou Deus". Por "Cessai", Ele está dizendo: "Pare com essa tua busca desenfreada, com essa tua agitação, com esse drama das TUAS coisas e dos TEUS interesses.. Parai.. cessai.. e vede que sou Deus.". É interessante notar ainda outro episódio. 

Certa vez, Jesus estava com os discípulos no alto mar. Acontece que, de um lado, o mar estava revolto e ameaçava pela sua violência; do outro lado, Jesus dormia, rsrs... Com este fato, Jesus parece fazer uma troça das nossas agitações, do nosso esperneamento. Os apóstolos, porém, se viam na iminência da morte. Então, acordaram a Jesus, que, criticando-os pela falta de Fé, olhou, em seguida, para a tempestade e o furor das águas, e simplesmente disse: "silêncio..."

Quando as coisas se acalmaram, os apóstolos então puderam colocar a sua atenção em Jesus e fazer uma pergunta que os levaria a uma resposta importantíssima: "Quem é este que até o vento e o mar obedecem?" Eles chegariam, a partir desta questão, àquilo que concluiu o beato Tito de Brandsma: "tudo é bom perto de ti". Esta quietude que se estabeleceu é importante para que as coisas sejam bem vistas, e é este o estado de alma que Jesus pretendia que os seus discípulos assumissem, quando lhes disse: "Nada temam; creiam somente."

Sta Teresinha, discípula eminente do divino mestre, aprendeu a lição de modo perfeito, e por isso escreveu, fazendo uma menção com o episódio que relatamos acima: 

"Viver de amor quando Jesus dormita: 
eis o repouso entre os escarcéus. 
Jesus, não temas que eu te acorde aflita; 
espero em paz o alvorecer dos céus." 

A analogia com o aspecto neurótico é, aqui, por demais conveniente, pois, embora fosse evidente aos Apóstolos o fato de que estavam ameaçados, é claro que não havia, na verdade, nenhuma possibilidade de morrerem ou se machucarem, pois Jesus estava com eles. Só o notarão, porém, quando estabelecida a calmaria. 

A diferença aqui é que a tranquilidade é estabelecida pelo próprio Deus. Com relação à neurose, é óbvio que Nosso Senhor está a nos ajudar e quer, muito mais do que nós mesmos, que saiamos dessas armadilhas; porém, o passo decisivo é nosso.

Abordemos ainda outra passagem. Há uma ocasião em que Pedro se comporta basicamente como neurótico. De novo, eles estão num barco, e já são três horas da madrugada. Dessa vez, o mar não está agitado. Porém, Jesus aparece ao longe andando sobre as águas. A primeira reação dos Apóstolos é ficarem com medo e pensarem em fantasmas. Jesus, porém, lhes esclarece que era Ele. Escutando isso, Pedro toma uma resolução interessante: "Se és Tu, manda que eu vá ter contigo sobre as águas", ao que Jesus responde: "vem". Esta atitude de Pedro é importantíssima; porém, mal começa a dar passos, ele volta a olhar para as supostas evidências de perigo e começa a preocupar-se - é tipo o outro que sai da redoma pela primeira vez. Pedro desvia os seus olhos da Verdade e volta a acreditar somente nas próprias suposições, o que faz com que comece a afundar.

O que Jesus propõe, sempre e em todo o tempo, é que o sujeito abandone o limite estreito dos seus interesses e preocupações, isto é, dos seus desejos e medos, e se lance acima disso, abandonando-se a si mesmo. Se Pedro tivesse feito isto, não teria afundado.

Interessante também é o caso do rapaz que vai ter com Jesus a fim de saber o que deve fazer para ser salvo. Jesus lhe indica a prática dos mandamentos. Quando alguém obedece regras, isto significa que ele reconhece uma autoridade externa a si mesmo; já não vive apenas para o próprio umbigo. Isto é fundamental. No entanto, o rapaz responde que faz isto desde a juventude. Jesus então, olha-o, ama-o - isto é dito pelo Evangelista - e, por fim, diz: "se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres; depois, vem e segue-me." Obviamente, o que Jesus oferece, agora, é uma radicalização do "viver para Outro" que o rapaz já tinha iniciado na juventude. O problema é que, no caso do jovem, a prática dos mandamentos tinha sido adotada porque isto não lhe exigia ultrapassar a si mesmo. Era-lhe confortável, natural e ele não se sentia pressionado a, na prática, abandonar a si mesmo. Os mandamentos funcionavam como uma legitimação dele próprio, do seu modo de vida; como um espelho que lhe confirmava a própria beleza; como uma garantia de que ele valia alguma coisa. Porém, quando Jesus lhe pede segui-Lo na nudez do espírito, - e só o pediu porque o amou muito, reforcemos - o sujeito sentiu-se ameaçado e, simplesmente, hesitando deixar-se a si mesmo, volta para casa "triste, porque tinha muitos bens". Aqui está um segredo profundo: os muitos bens significam muitos cuidados e estes se inserem naquela estrutura de que falávamos no início: a satisfação de muitos desejos e a verificação constante de possíveis ameaças. A princípio, parece-nos que a posse de muitos bens seria causa de uma grande alegria. Este sujeito, porém, nos confirma a fragilidade de nossas suposições. A alegria, a liberdade parecem estar justamente no abandono de si mesmo em função de um Outro. Ávido, assim, de tantos bens, o sujeito não possui a clareza suficiente para enxergar as coisas de modo profundo. É por isto que S. Francisco de Assis exigia dos seus discípulos uma pobreza completa.

O problema aqui não está estritamente nos bens materiais. S. João da Cruz explicando esse tema da pobreza, diz mais ou menos o que segue: "os bens materiais, por serem exteriores à alma, nada podem fazer, por si mesmos, a ela. O que a enfeia e obscurece é o desejo e o apego que a eles ela investe." O apego, aqui, poderia ser entendido como um medo de deixá-las. Como vimos, este tipo de atitude aprisiona e faz que a pessoa permaneça limitada nos seus próprios interesses, sem abrir-se à Verdade maior.

Jesus, ao contrário, propõe um caminho de liberdade: "Negue-se a si mesmo e siga-me".

É preciso, portanto, transcender o limite dos próprios desejos e medos, e isto se faz por meio do abandono. Quem quer que viva assim, de modo correto, experimentará que sua alma retoma uma saúde que ela nem suspeitava que tinha. E se a pessoa se decide trilhar, de fato, a via da santidade, notará que sua vida vai rendendo, em satisfação, como que cem por um.

Se a neurose se caracteriza por uma proteção pessoal contra supostas ameaças, para desfazê-la, o sujeito deverá munir-se de uma absoluta confiança em algo fora de si. Porém, esta confiança não pode surgir do nada. É preciso adquiri-la e, para tal, o indivíduo terá de iniciar a prática do abandono, isto é, de sair de si e fazê-lo com gratuidade, sem esperar respostas imediatas. Apenas fazê-lo.

Quando uma pessoa vive somente de desejos e medos, ela faz com que sua alma esteja sempre tensa, como já dissemos, e tende a adquirir modos grosseiros, perdendo a sua delicadeza. Isto acontece porque, como ela pretende ser a garantia de seu próprio bem, toda ação da qual for sujeita se ordenará ou para agarrar (pegar por si mesmo) algo que considere um bem (que lhe possa causar prazer, o que é raiz do pecado), ou para afastar violentamente o que considere ser um mal (o que lhe cause desprazer), atitude que é a raiz da nossa dificuldade de aderir à virtude, à mortificação, aos sacrifícios, etc.

Agarrar e empurrar: eis a vida do neurótico. Ambas se caracterizam por movimentos bruscos. Como uma pessoa assim poderá amar profundamente, sendo o amor, basicamente, doação de si mesmo? Como poderá ter uma religiosidade profunda se esta supõe, sempre, amor a Deus e, portanto, abandono? Não é que lhe seja impossível amar ou ser religiosa; é que, para amar profundamente e ter uma religiosidade autêntica, ela terá de contrariar este seu hábito soberbo. A vivência de um amor autêntico, sobretudo com Deus, pode sim ensinar-lhe a dar este salto sobre si mesmo, ao ponto de oferecer-se inteiramente a um outro. A constituição de uma família, neste sentido, também é fundamental. Diz-se, por aí, que quando uma pessoa casa, ela muda pra melhor - em alguns casos sim, rs. E isto se dá porque, a partir do momento em que o sujeito deixa de pensar só em si, só na própria segurança, só no próprio gozo, e nota que os outros são realmente outros, e não objetos para aquisição de prazer, ele como que se reencontra consigo mesmo, e descobre o que significa ser um homem - um humano.

Sobre isso, escreve Thomas Merton: "fazer o bem e renunciar ao mal não é, ainda, a santidade. É tão somente o tornar-se homem. Um animal não pode ser um santo".

Ainda sobre estes modos bruscos do neurótico que se pretende a garantia de si mesmo, escreve S. João da Cruz que o santo deve passar por um longo processo de educação: "para que a delicadeza encontre a Delicadeza". Para encontrar-se com Nosso Senhor é preciso aprender a amar como Ele ama. É o que mais ou menos dizia Plotino: "para que nosso olho pudesse contemplar perfeitamente o sol, teria de tornar-se algo semelhante a ele. Assim, para contemplarmos a beleza, é forçoso que a nossa alma se torne, também, beleza".

Adão quis agarrar o fruto proibido e quis agarrar a condição de ser igual a Deus. É basicamente esta atitude que reside no íntimo de cada alma humana e que é causa de toda rebelião contra Deus, isto é, contra a verdade; é a raiz de toda auto-suficiência, de toda recusa da gratuidade, de toda recusa da confiança num Outro e, portanto, de todo pecado e de todo desamor. O que é o pecado senão um agarrar, de modo ilegítimo e grosseiro, um prazer? O que é o pecado senão uma satisfação bruta do próprio egoísmo? E é justamente este egoísmo que, rebelando-se contra a verdade, confecciona os medos imaginários.

Sobre isto, escreve o Apóstolo S. João: "onde há medo, o amor não é perfeito". Pensem nisso... Abandonem a si mesmos; arrisquem-se. Diz Jesus aos que ficam temerosos: "os pardais não ajuntam em celeiros; no entanto, embora sejam tantos, Deus os alimenta. Os lírios não tecem nem fiam; no entanto, embora sejam tantos e de tão curta duração, Deus os veste de modo mais belo do que qualquer rei jamais conseguiu se enfeitar. Acordem: vocês valem mais que pássaros; vocês valem mais que lírios..."

Por fim, Nosso Senhor, embora seja Deus, está tão sedento do nosso bem que Ele praticamente apela: "Se não credes pelas minhas palavras, crede pelo menos ao verdes as obras que eu faço..." e ainda "a obra de meu Pai é que vocês creiam nAquele que Ele enviou".

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Neste post, não abordei exatamente o que prometi no último, mas penso que estes paralelos com ensinamentos de Nosso Senhor sejam luminosos para nos fazer entender a natureza de tudo isto, conforme havia dito o Apóstolo João: "Ele é a Luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem".

Pax.

Fábio

Um comentário:

Kushina disse...
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