terça-feira, 18 de outubro de 2011

II - A Normalidade: Ordem, Santidade e Amor


Sendo universal esta inclinação à neurose, tem sentido falar de normalidade ou de saúde? Não tem razão, no fundo, Freud, e os que o seguem, ao negar a possibilidade de uma cura total? Absolutamente não. A postura de Allers está muito longe do pessimismo psicanalítico, que reduz a cura à tomada de consciência da desordem, sem possibilidade de remediá-la.

Em primeiro lugar, Allers põe de manifesto a limitação de uma concepção meramente estatística da normalidade.

Suponhamos que em um país houvesse 999 homens afetados pela tuberculose e só um que não estivesse enfermo. Se poderia concluir que o "homem normal" é aquele cujos pulmões estão carcomidos pela enfermidade? O normal não se confunde com a média. Se pois, segundo a média, o homem se decide pelo instinto, isto não prova que não possa fazer outra coisa, nem que os valores elevados são por natureza débeis.

Se o critério estatístico fosse a norma decisiva, a normalidade seria a tristeza, o fracasso, a rebelião, o desequilíbrio... Para Allers, o critério de normalidade se toma da ordem da realidade, e isto já no nível da medicina.

A medicina, tratando um enfermo, não tem somente a intenção de liberá-lo de seus sofrimentos e de fazê-lo capaz de ganhar a vida; quer também e sobretudo restaurar o estado "normal", porque sabe que o "normal" é o que "deve" ser. [...] A medicina não pode mais que aceitar, seja inconscientemente, seja mesmo contra sua vontade, a idéia de uma ordem para além dos fatos, um estado de coisas que não existe sempre, mas que deve existir e cuja realização constitui o estado "normal".

A anormalidade constitui, portanto, uma ruptura da ordem, embora seja para recair em uma ordem inferior ao devido a sua natureza, pois o homem não pode abolir absolutamente toda a ordem da realidade, senão o que lhe está sujeito. A desordem e anormalidade humanas acontecem, segundo Allers, por três razões: a vontade, a alienação mental em sentido estrito, e a neurose, que participa um pouco de ambas.

A ação anormal é o resultado ou de uma vontade consciente, ou de uma alienação mental, ou desta curiosa modificação do caráter que chamamos neurose. Cada ação ou cada conduta está determinada por seu fim. Este fim é, sem exceção alguma, a realização de um valor julgado mais alto que todo outro considerado na mesma circunstância. As leis que regem a normalidade das ações são as da ordem objetiva dos valores. A anormalidade de uma ação é, em certos casos, causada pela ignorância ou por uma visão errônea da ordem. É mais ou menos o caso do alienado. Em outros casos - esperamos que sejam muito raros - o sujeito age contra umas leis não só conhecidas por ele, senão contra leis das quais não põe em dúvida a validez. Isto é, então, a rebelião aberta, o satanismo declarado. Finalmente, há uma terceira atitude que se localiza de alguma maneira entre as duas precedentes: é a rebelião cuja natureza e existência o sujeito mesmo ignora.

Vimos no ponto anterior que esta última forma de desordem está virtualmente em todo homem pelo pecado original, embora nem sempre se manifeste. Por isso voltemos à pergunta inicial: É possível a normalidade? Em caso afirmativo, em que consiste? Allers responde da seguinte maneira:

Do fato que a inautenticidade constitui, como a todo mundo é dado a entender, uma característica essencial do comportamento neurótico, se segue ademais a consequência de que somente aquele homem cuja vida transcorra em uma autêntica e completa entrega às tarefas da vida (naturais ou sobrenaturais) poderá estar livre por inteiro das neuroses; aquele homem que responde constantemente com um decidido 'sim' ao seu posto de criatura em geral e de criatura com uma específica e concreta constituição. Ou dito com outras palavras: "fora da neurose não fica ninguém além do santo".

Isto pode soar estranho e, com efeito, tem causado muitas polêmicas. Mas se se analisa bem a concepção allersiana da neurose, como não reduzida ao transtorno declarado e explícito, mas como existente radicalmente em todo homem por causa da natureza decaída, estas afirmações são de todo lógicas (para não dizer, ademais, que são congruentes com a experiência cristã). Mas Allers não fica na constatação, por assim dizer, "negativa" da ausência da neurose em uma vida santa ou que tenda realmente à santidade, senão que, "positivamente", afirma que a autêntica "saúde da alma" só se encontra na santidade.

Deste modo, Allers supera amplamente as mesquinhas definições de normalidade da psicologia contemporânea, quando as há, mesmo a de seu mestre Alfred Adler. Sem embargo, assume o que na postura deste último há de verdadeiro. Para Adler, o fim real da vida humana, ao qual se contrapõe o fim fictício da superioridade egocêntrica neurótica, está indicado pelo "sentimento de comunidade", que impulsiona ao altruísmo e a dar a vida pelo bem comum. Em Adler, esta visão fica encerrada em uma atitude imanentista, de tal modo que ao final termina quase por divinizar a comunidade humana. Ao contrário, em Allers, a tendência à vida comunitária, que ele chama, não "sentimento", mas "vontade de comunidade", se cumpre no modo mais pleno na comunidade sobrenatural dos santos, na Igreja, que realiza totalmente a tendência à universalidade por sua intrínseca "catolicidade".

A educação tem que resolver esta difícil tarefa: encontrar o caminho que media entre aquelas medidas que podem minar a vivência do valor próprio, e as que propendem a instaurar uma absolutização desta mesma pessoa. [...] Este paradoxo e antinomia (não maior, ademais, que as restantes divergências antinômicas da vida humana) encontra sua expressão, ou melhor, seu modelo na pervivência de Cristo na Igreja, enquanto comunidade dos santos, podendo viver também na pessoa humana individual: "não vivo eu, mas é Cristo que vive em mim". Assim, pois, o ideal do caráter que unicamente pode satisfazer por inteiro as condições da existência e a natureza humanas - por muito que em concreto varie, de acordo com a constituição individual e a estrutura cultural, nacional, situacional - deve permanecer inscrito no quadro de uma forma de vida que reduza à unidade as divergências polares de indivíduo e comunidade, de pessoa auto-valiosa e totalidade fundadora de valor, de finitude criadora e vocação a participar na vida divina. Não são necessárias mais aclarações para ver que todas estas exigências se cumprem em uma vida católica profunda e exatamente entendida. Assim como Katholikè não somente se estende sobre todas as culturas, povos e tempos, senão que também abarca toda a qualitativa diversidade das pessoas humanas individuais, assim também a vida católica, uma vida segundo o princípio católico, pode satisfazer as divergências de nosso ser, reduzindo-as à unidade de contrários. Não só a Igreja deveria poder viver Kat'olon - por cima de tudo - como de fato o faz, senão, também, cada um dos seus membros.

Aquilo que leva a transcender de alguma maneira a solidão original em que o homem se encontra, e sobre todo seu egoísmo antinatural, é a força do amor. O desejo de união substancial com o amado, sem embargo, não é possível no nível criatural, nem sequer na união nupcial, imagem do amor por excelência. Só o amor de Deus é capaz de preencher o desejo de união e completude a que aspira o coração humano.

Com efeito, que o amor, atitude do eu, seja capaz de levar o homem a transcender seu próprio eu, é uma coisa inimaginável. Para que o eu seja lançado além de si mesmo, é indispensável a intervenção de uma força exterior a si mesmo. Esta força, o amor não pode exercê-la se não é, não somente o ato, a paixão, a atitude do eu, mas um ser em quem o eu e o amor se confundem. É necessário que seja o Amor substancial, e não uma modificação de um ser essencialmente diferente dele. Quando age este Amor, de Deus, a união pode ser realizada (não pelas propriedades de nossa natureza, mas pela graça que vem do alto) a um grau que nenhuma união daqui de baixo poderia produzir jamais. A realização dos desejos que o amor desperta na alma só é possível no amor de Deus e pela ajuda outorgada à nossa impotência pela bondade do Altíssimo.

Martin F. Echevarria.

Nenhum comentário: