domingo, 2 de outubro de 2011

Existência de Deus em Descartes


Depois, tendo refletido sobre o que duvidava, e que por conseguinte meu ser não era de todo perfeito, pois para mim era claro que perfeição maior do que duvidar era conhecer, deliberei procurar de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que eu, e conheci, com evidência, que algo devia existir de natureza mais perfeita.

No que concerne aos pensamentos que tinha sobre várias outras coisas exteriores a mim, como o céu, a terra, a luz, o calor e milhares de outras coisas, não me era tão difícil saber de onde provinham, porque, não vendo neles nada que me parecesse torná-los superiores a mim, podia acreditar que, se eram verdadeiros, eram dependências da minha natureza, do que esta tinha de perfeição, e, se não o eram, isso significava que provinham do nada, isto é, que me haviam sido inspiradas pelo que eu tinha de falho. O mesmo, porém, não podia suceder com a idéia de um ser mais perfeito do que eu, pois era manifestamente impossível tirá-la do nada. E, uma vez que não é menos repugnante admitir o mais perfeito como resultado e dependência do menos perfeito do que admitir que do nada procede alguma coisa, tornava-se claro que tampouco de mim poderia eu tê-la recebido.

Chegava, assim, à conclusão de que fora em mim introduzida por uma natureza verdadeiramente mais perfeita do que eu e encerrasse em si todas as perfeições das quais pudesse eu fazer uma idéia, isto é, para explicar-me numa palavra: Deus. A isso acrescentei, que uma vez conhecendo algumas perfeições que não tinha, não era eu o único ser existente, mas era necessário haver outro mais perfeito do qual eu dependesse e de quem tivesse adquirido tudo o que possuía. Com efeito, se eu fosse só e independente de qualquer outro ser, e tivesse recebido de mim mesmo todo esse pouco pelo qual participava do Ser supremo, de mim teria podido tirar, pela mesma razão, tudo o mais que reconhecia não possuir e, dessa forma, ser também eu infinito, eterno, imutável, onisciente, onipotente, enfim, ter todas as perfeições que podia notar existirem em Deus.

De fato, de acordo com os raciocínios que acabo de fazer para conhecer a natureza de Deus, tanto quanto a minha era capaz, só Mem resta considerar se era ou não perfeição possuir todas as coisas de que tinha uma idéia. E estava seguro de que em Deus não havia nenhuma que apresentasse qualquer imperfeição, mas que todas as outras existiam. A dúvida, a inconstância, a tristeza e coisas semelhantes não podiam existir em Deus, uma vez que eu próprio me sentiria feliz se pudesse estar isento delas.

Além disso, eu tinha idéias de muitas coisas sensíveis e corporais, pois mesmo supondo que sonhava e que tudo o que via ou imaginava era falso, nem por isso podia negar que as idéias a respeito existiam de fato no meu pensamento. Mas, tendo observado em mim, com muita clareza, que a natureza inteligente é diversa da corporal, e considerando que toda composição é uma prova de dependência, sendo esta manifestamente um defeito, julguei que Deus não poderia ser perfeito se fosse composto dessas duas naturezas e, por conseguinte, não o era, e que, se no mundo havia corpos, inteligências ou outras naturezas que não eram inteiramente perfeitas, a sua existência devia depender do poder de Deus, de maneira que não pudessem subsistir um só momento sem ele.

Pretendi, depois, buscar outras verdades, e, tendo-me proposto o objeto dos geômetras, que eu concebia como um corpo contínuo ou um espaço infinitamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade, divisível em diversas partes que podiam ter diversas figuras e grandezas, e ser movidas e transpostas de todos os modos, pois os geômetras supõem tudo isso no seu objeto, examinei algumas de suas demonstrações mais simples. Notei, então, que a grande certeza que todos lhe atribuem se baseia unicamente no fato de serem concebidas com evidência, de acordo com a regra que há pouco expus. Depois, também notei que não havia nelas nada que me certificasse da existência do seu objeto, pois via, por exemplo, que num triângulo os três ângulos devem ser necessariamente iguais a dois retos, mas não via nisso nada que me garantisse existir no mundo qualquer triângulo.

Assim, tornando a examinar a idéia que fazia de um ser perfeito, achei que a sua existência estava nele compreendida do mesmo modo que na de um triângulo está incluso que os seus três ângulos são iguais a dois retos, ou, na de uma esfera, que todos os seus pontos são eqüidistantes do centro, ou ainda mais evidentemente. Portanto, é pelo menos tão certo que Deus, esse ser perfeito, é ou existe, quanto o pode ser qualquer demonstração da geometria.

René Descartes, Discurso do Método, Quarta Parte

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